O poema que não tinha escrito
(Eugénio de Sá)
Não me ocorrera ainda descrever
A nostalgia de uma vida omissa
Porque sempre entendi como premissa
Contar coisas que pudesse entender
Mas o espírito manda e a gente faz
um poema de sentidos que não sinto
E embora muitos vão pensar que minto
Não é decerto isso que me apraz
Vivo como saudoso de irrealidades
De memórias inertes que me assombram
Busca vã nos registos das minhas saudades
E como que vindas do meu inconsciente
Desfilam cenas de vidas passadas
Baixos relevos, são tudos e nadas
Que da realidade não são consistentes
Mas não quero perder este condão
Que me enternece e enche de carinho
E que é p’ra mim como o pão e o vinho
Num enlevo de preces em celebração
Revejo um rosto no meu devaneio
Um olhar manso de calma sedução
Fico tonto de amor naquela mansidão
Inunda-se-me a alma plena desse enleio
Até que enfim a vida vem bater-me à porta
Desperta-se o torpor repõe-se a inquietação
Mas nos sombrios recantos deste coração
Permanece a ternura longe de estar morta