domingo, 4 de agosto de 2013

Que não se limite a veia criativa a um poeta, a um escritor ! Eugénio de Sá




Que não se limite a veia criativa
a um poeta, a um escritor!
Esta é uma questão, sempre momentosa, que deixo à reflexão do leitor.

Por: Eugénio de Sá


Um poeta, um escritor, é, por natureza, um ficcionista. Não pode imaginar-se que quem faz da escrita uma atividade quotidiana se limite a transmitir ao que escreve os seus próprios sentimentos. Não se pode pensar, por exemplo, que um dramaturgo, ao escrever para uma peça teatral, esteja a navegar num mar de dramaturgia própria, vandalizando o santuário da sua alma com invasões tumultuadas e masoquistas.

O mesmo se passa com um poeta ao descrever, em metáforas, todo um oceano de sentimentos humanos, fruto da sua cultura vivencial, não necessariamente recolhida em experiências próprias, mas também doutros cúmulos, com base no que leu, viu e ouviu no decurso de toda a sua existência, já que é, por natureza, um observador atento dos corportamentos do seu semelhante.

Coartar este fluxo criativo a um escritor, a um poeta - bastas vezes por motivos puramente egoístas, não alheios a eventuais tendências esquizofrénicas - é sempre um acto cruel a repudiar. Invariávelmente, o portador dessas propensões bizarras, procura encontrar justificação para si próprio no que ele pensa serem fundadas razões, mas que, na realidade, brotam de uma inconfessada inveja, ou do torpe ciúme, ou ainda doutra qualquer autoproposta e distorcida visão nascida de sentimentos menores, senão mesmo vis.

Estes procedimentos constituir-se-ão sempre numa condenável, cobarde e injusta censura, que ignora ou tenta minorizar a força do acto criativo, querendo reduzi-lo por “mesquinhices” castradoras, que, mais tarde ou mais cedo, acabarão por produzir sérios revezes na veia criadora daquele que se escolheu como vítima desse tipo de agressão.

Por tudo o que fica escrito, ganha jus o poema do imortal José Carlos Ary dos Santos, que a seguir transcrevo: 
 
   
    Poeta Castrado, não!
 
    Serei tudo o que disserem
    por inveja ou negação:
    cabeçudo, dromedário
    fogueira de exibição
    teorema, corolário
    poema de mão em mão
    lãzudo,  publicitário,
    malabarista,  cabrão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado, não!
 
    Os que entendem como eu
    as linhas com que me escrevo,
    reconhecem o que é meu
    em tudo quanto lhes devo:
    ternura, como já disse
    sempre que faço um poema;
    saudade que se partisse
    me alagaria de pena;
    e também uma alegria,
    uma coragem serena
    em renegar a poesia
    quando ela nos envenena.
 
    Os que entendem como eu
    a força que tem um verso
    reconhecem o que é seu
    quando lhes mostro o reverso:
 
    Da fome já não se fala…
    é tão vulgar que nos cansa ...
    mas que dizer de uma bala
    num esqueleto de criança?
 
    Do frio não reza a história…
    a morte é branda e letal ...
    mas que dizer da memória
    de uma bomba de napalm?
 
    E o resto que pode ser
    o poema dia a dia? …
    Um bisturi a crescer
    nas coxas de uma judia;
    um filho que vai nascer
    parido por asfixia?! …
    Ah não me venham dizer
    que é fonética a poesia!
 
    Serei tudo o que disserem
    por temor ou negação:
    Demagogo, mau profeta
    falso médico, ladrão
    prostituta, proxeneta
    espoleta, televisão.
    Serei tudo o que disserem:
    Poeta castrado, não!

    José Carlos Ary dos Santos

Ouçam aqui a fabulosa declamação do saudoso autor:



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