Que não se limite a veia criativa
a um poeta, a um escritor!
Esta é uma questão, sempre
momentosa, que deixo à reflexão do leitor.
Por: Eugénio de Sá
Um poeta, um
escritor, é, por natureza, um ficcionista. Não pode imaginar-se que quem faz da
escrita uma atividade quotidiana se limite a transmitir ao que escreve os seus
próprios sentimentos. Não se pode pensar, por exemplo, que um dramaturgo, ao
escrever para uma peça teatral, esteja a navegar num mar de dramaturgia
própria, vandalizando o santuário da sua alma com invasões tumultuadas e
masoquistas.
O mesmo se
passa com um poeta ao descrever, em metáforas, todo um oceano de sentimentos
humanos, fruto da sua cultura vivencial, não necessariamente recolhida em
experiências próprias, mas também doutros cúmulos, com base no que leu, viu e
ouviu no decurso de toda a sua existência, já que é, por natureza, um
observador atento dos corportamentos do seu semelhante.
Coartar este
fluxo criativo a um escritor, a um poeta - bastas vezes por motivos puramente
egoístas, não alheios a eventuais tendências esquizofrénicas - é sempre um acto
cruel a repudiar. Invariávelmente, o portador dessas propensões bizarras,
procura encontrar justificação para si próprio no que ele pensa serem fundadas
razões, mas que, na realidade, brotam de uma inconfessada inveja, ou do torpe
ciúme, ou ainda doutra qualquer autoproposta e distorcida visão nascida de
sentimentos menores, senão mesmo vis.
Estes
procedimentos constituir-se-ão sempre numa condenável, cobarde e injusta
censura, que ignora ou tenta minorizar a força do acto criativo, querendo
reduzi-lo por “mesquinhices” castradoras, que, mais tarde ou mais cedo,
acabarão por produzir sérios revezes na veia criadora daquele que se escolheu como
vítima desse tipo de agressão.
Por tudo o que fica escrito, ganha jus o poema do imortal José Carlos Ary dos Santos, que a seguir transcrevo:
Poeta Castrado, não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo, dromedário
fogueira de exibição
teorema, corolário
poema de mão em mão
lãzudo, publicitário,
malabarista, cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado, não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo,
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura, como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria,
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala…
é tão vulgar que nos cansa ...
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história…
a morte é branda e letal ...
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia? …
Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?! …
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo, mau profeta
falso médico, ladrão
prostituta, proxeneta
espoleta, televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado, não!
José Carlos Ary dos Santos
Ouçam aqui a fabulosa declamação
do saudoso autor:
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